Miguel Torga: Um poeta de um "Reino Maravilhoso" sem fronteiras
Parte I - A Terra Natal e a Infância
O "Reino Maravilhoso", S. Martinho de Anta.
O nascimento e a infância de Adolfo Correia da Rocha
A frequência do Seminário de Lamego
A condição de criado de servir na cidade do Porto
A emigração para o Brasil
Parte II - Da emigração no Brasil às primeiras publicações
O Brasil
O regresso à pátria
A Universidade de Coimbra
Os grupos literários - Presença, Sinal, Manifesto
Os primeiros livros
Parte III - Do nascimentode Miguel Torga à morte da mãe
Parte IV - O regresso definitivo ao "Reino Maravilhoso"
Bibliografia
“O segundo cavaquinho de Miguel Torga”, in Capa e Batina, 25 (Maio-Junho 1969,) p. 7.
“Prémio Internacional de Poesia para Miguel Torga”, in O Primeiro de Janeiro (08-09-1976) p. 1. 9.
“Retalho da vida de um poeta”, in “Torga, um poeta eterno”, in O Primeiro de Janeiro, Caderno Especial, (23-02-1996) p. 6-7.
“Terra Natal homenageia «Filho». Corpo de Torga passa por escola antes de romagem para cemitério”, in “A Capital” (18-01-1995) p. 32.
“Torga, um poeta eterno”, in O Primeiro de Janeiro, Caderno Especial, (23-02-1996) p. 1-15.
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AFREIXO, R. “Miguel Torga sepultado
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ROCHA, C. CRABBÉ (2000) Miguel Torga – Fotobiografia, Publicações Dom Quixote Lisboa.
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TORGA, Miguel (1990). Entrevista, in MOLINA, C. A. (1990). Sobre el lberismo y Otros Escritos de Literatura Portuguesa. Madrid: Akal, p. 187-199.
TORGA, Miguel (1991). A Criação do Mundo (edição conjunta). Coimbra: ed. do Autor.
TORGA, Miguel (1993). Contos da Montanha. Coimbra: ed. do Autor.
TORGA, Miguel (1995). Diário (edição integral). Coimbra: ed. do Autor.
Podemos perguntar-lhe quem é Miguel Torga. Como se define como poeta e escritor?
“O meu verdadeiro rosto, presente ou futuro, está nos livros que escrevi. É neles que disse quem sou e como sou”. “Não há espelho mais transparente do que uma página escrita. É nela que fica testemunhada para todo o sempre a verdade irreversível do autor”.
[...]
Já que escolhemos o Diário como obra para concorrer no concurso “Sapo Challenge”, como nos definiria o seu Diário?
“O Diário foi começando quando eu era criança. Continuou durante a época trágica da ditadura. Portanto não havia liberdade de pensamento existia uma censura brutal. Todos os jornais estavam calados, tal como os livros. Publiquei vários que foram apreendidos imediatamente. Como sabe, estive preso. A minha mulher foi expulsa da Universidade. Então o Diário foi surgindo de várias necessidades que havia
Estamos a comemorar os cem anos do nascimento de Adolfo Correia da Rocha, o egrégio escritor da língua de Camões da vigésima centúria que ocupa lugar de proeminente no altar da literatura portuguesa com o pseudónimo de Miguel Torga.
É nosso desiderato homenagear o homem e o poeta que marcaram indelevelmente a literatura e história portuguesas.
Pretendemos rememorar “poemas” imorredouros que são autênticos hinos ao homem, à terra e a Portugal.
S. Leonardo de Galafura é o Poema. Um “poema geológico” (Diário, S. Leonardo de Galafura, 8 de Abril de 1977). Este poema é um carme à paisagem do Doiro. Um poema palavra, espelho desta singular região adjectivada pelo assombro e pela beleza absoluta da paisagem natural engrandecida pela história trágico-telúrica do peculiar herói duriense, escrita nas fragas com a tinta do suor. Um hino à terra. Uma epopeia lavrada paulatinamente no coração do autor. Não tem data. Não nasceu. Foi sendo gerada. O seu antigo companheiro das batidas às perdizes, o Padre Avelino, devoto leitor e amigo do poeta, afirma que lhe tinha custado uma perdiz, que Torga falhou. Justificava-se que naquele momento se lhe estava a desenrolar um poema. Um grande poema.
“Enquanto o meu corpo e o meu espírito puderem esbracejar, nunca farei o jogo sujo de erguer as mãos por cálculo diante de nenhum altar. Mas dado que sim, que exista um Deus cioso que a minha miopia me não deixa ver claramente, quero crer que é esta mesma atitude de rebeldia que espera de mim. Tragicamente postas num pé de dúvida irremediável, as nossas relações teriam de ser, e foram sempre, difíceis mas viris. De potestade a potestade. A omnipotência divina enfrentada pela inconformação humana” (Diário, Lisboa, Hospital de S. Luís, 22 de Junho de 1972)
Torga faz da liberdade a sua religião: “a sua maior fé – como escreve Letria - foi a liberdade, dela fazendo estandarte e programa de vida, sobretudo no tempo em que a ditadura a deixou proscrita e vilipendiada”. Esta luta pela liberdade e pela identidade na conjuntura política fascista e, portanto, ditadura, e sua denúncia, desembocam na prisão de Torga, no Aljube, em 1939, onde habitou os curros durante três meses. Torga é arquétipo e epifania da revolta contra a Guerra Civil Espanhola. O seu protesto valeu-lhe a prisão, alegadamente encomendada por Franco, devido à publicação de O Quarto Dia de A Criação do Mundo, onde testemunha, numa viagem pela Europa, a cruciante realidade do confronto entre as duas Espanhas, uma pátria convulsa, submetida à violência, destruída. No cativeiro, escreve Torga um dos seus mais belos poemas, um autêntico hino à liberdade, ou melhor, à ânsia de liberdade na ausência dela:
“Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco e frio,
A este rio Tejo de Lisboa.
Carregado de sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades…
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades…
Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre gaivotas que se dão no rio.
Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar a âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro”
(Diário, Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Janeiro de 1940)
Dentro deste panorama geográfico, que é a pátria, mantém-se fiel à sua condição de homem simples, de homem do povo, de “filho, neto, bisneto e tetraneto de obscuros cavadores, carreeiros e almocreves que séculos a fio saibraram, sulcaram e palmilharam as encostas do Doiro” (Diário, Régua, 19 de Agosto de 1979), ele que foi, além disso, “criado a ouvir a crónica deles e a de quantos os acompanhavam na via sacra e Deus sabe até que ponto ela era dolorosa” (Diário, Régua, 19 de Agosto de 1979).
A Comunhão com as suas gentes, marco geodésico da obra do poeta nascido no Marão, é epifania da sua Comunhão com toda a humanidade nos altares da vida. A comunhão com o semelhante, sobretudo o povo simples, porque autêntico, dita a Torga o seu ideal humanista.
O desespero humanista lança as suas raízes na constante procura do verdadeiro sentido da existência humana, que não consegue atingir na sua plenitude, o que o mergulha na angústia. Torga anela dissecar os mistérios do ser e da vida pelo bisturi da introspecção, um mistério que insondavelmente nos define e nenhuma anábase ao cerne da interioridade, por mais lúcida, paulatina, sincera e profunda, consegue aclarar. Como humanista, Torga manifesta a sua preocupação com o ser humano, as suas limitações e a sua necessidade de transcendência. Vive inquieto com a vida humana, a existência, o destino, o sentido da morte, a condição terrena. Representado sob a forma de protesto, de revolta e de inconformismo, são a liberdade e a esperança os valores que articulam o seu humanismo.
Torga projecta, na sua escrita, as suas preocupações com o ser humano, as suas limitações e as suas necessidades de transcendência. Revela, na letra rasgada burilada a cinzel por este “pedreiro teimoso” (Diário, S. Martinho de Anta, 6 de Abril de 1955), a história particular que os nossos passos vão deixando gravados nas páginas invisíveis do tempo. Evidencia um certo sofrimento magoado, feito desassossego, que fazem de Torga uma corda de viola esticada entre dois extremos: o sofrimento e a esperança. A esperança e a desesperança surgem como expressão de um conflito íntimo que se desenvolve no interior do Poeta. Torga é um “sinaleiro da esperança” (Diário, Ponta Delgada, 10 de Junho de 1989) mas, concomitantemente, “amarrado à cruz do sofrimento” (Diário, Coimbra, 10 de Fevereiro de 1984). Nos seus poemas, escandidos de uma beleza seivosa, ainda que quando repassados de tristura, bate uma luz vesperal de indecisão entre a esperança e o desespero. A vida, com as suas circunstâncias, anemia progressivamente as pétalas da esperança, mergulhando o homem nas águas inóspitas do desespero. Urge “semear ao menos o penisco da esperança no chão actual” (Diário, Coimbra, 31 de Maio de 1958) e, ainda que os frutos sejam serôdios, é já uma promessa de salvação.
“Homem do humano” (Diário, Pisa, 6 de Setembro de 1970), a sua palavra é a sístole ou a diástole de um coração que nunca deixou de bater humanamente.
O homem, que na prospecção aos mares incógnitos do humano, descobre como mistério. Um mistério indeclinável, oculto, impenetrável, opaco a todas as luzes. Um mistério que é pessoal, envolvente, mas que o revela no mais profundo de si. Mistério este que é permanente e que foge a todas as regras e medidas: “Não encontrei resposta para nenhuma das perguntas inquietantes que em momento algum deixou de me fazer a voz atormentada da alma” (Diário, Nazaré, 12 de Agosto de 1969).
Face a esta inquietação, que resulta da questão fundamental, parece levantar-se a questão da opção do sentido. O sentido que está, como afirma Torga nas palavras dos oitenta e quatro anos, na “graça desta comunhão humana, sem a qual a passagem pelo mundo não teria sentido” (Diário, Coimbra, 12 de Agosto de 1991).
O homem depende da comunhão com o seu semelhente. Só quando convivemos com os outros é que somos nós em realidade: “Afinal - escreve Miguel Torga -, dependo, como humano, da comunhão com a humanidade dos outros (...). Só quando convivo, em pensamento, palavras e obras, vivo e sou realmente eu” (Diário, Coimbra, 20 de Outubro de 1984).
É no desespero que o homem sente mais agoniadamente a necessidade desta relação com o semelhante, a necessidade de “sentir as pancadas do coração sincronizadas com as doutros corações” (Diário, Miramar, 25 de Julho de 1961), numa tentativa de mitigar a dor: “Era um parceiro de vida que eu precisava agora, oco tambor que fosse, com o qual acertasse o passo da inquietação” (Diário, Miramar, 25 de Julho de 1961). De facto, até a Bíblia, “o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum Cireneu para o aliviar do peso da cruz” (Diário, Malaposta, 12 de Agosto de 1987)
A comunhão é definida por Torga como a (con)vivência tolerante, livre e fraterna do género humano. É nesta acepção que Torga faz a apologia de todas as suas meditações e de toda a sua obra, “ter pensado sempre em termos de livre comunhão e desinteressada fraternidade o mundo redondo” (Diário, Estoril, 8 de Junho de 1992). O amor torna-se, destarte, no garante da liberdade: “Só na reciprocidade do amor a liberdade encontra a sua expressão verdadeira” (Diário, Coimbra, 9 de Julho de 1985).
Torga, poeta e homem livre – “poucos devem ter tido no mundo a minha sorte: ser um homem inteiramente livre?” (Diário, Coimbra, 20 de Maio de 1947), é o estreme corifeu da liberdade, não uma liberdade decretada, mas uma liberdade dom, intrínseca à própria identidade da pessoa: “Ser livre é um imperativo que não passa pela definição de nenhum estatuto. Não é um dote, é um dom” (Diário, Coimbra, 5 de Dezembro de 1973).
“A minha pátria cívica acaba em Barca de Alva; mas a minha pátria telúrica só finda nos Pirinéus. Há no meu peito angústias que necessitam da aridez de Castela, da tenacidade vasca, dos perfumes do Levante e do luar andaluz. Sou, pela graça da vida, peninsular. Ardo no fogo desta fé que nos devora, exalto-me nas ambições desmedidas dos nossos maiores, e afundo-me dentro de uma invencível armada de quimera” (Diário, Coimbra, 14 de Novembro de 1985).
Fiel a um patriotismo telúrico, o grande poeta da montanha, apresenta-se ante nossos olhos como um autor perfeitamente identificado com a realidade telúrico-social portuguesa. As páginas, que lhe saem da pena, são carne viva onde se estampa o plasma matricial da pátria.
A “parábola” dos seus dias é o auto-retrato de Portugal, um mapa físico e espiritual da pátria, onde se revela um Portugal real, cheio de virtudes e defeitos, que quer caminhar para um futuro de liberdade, progresso e justiça social, sem perder os valores matriciais, que são o timbre da sua identidade, tantas vezes ameaçada e prostituída pela visão míope dos turibulários do poder e a astenia cultural e patriótica do povo, siderado pelos acenos transfronteiriços. Um Portugal que, masoquisticamente, se desfigura, envergonhado da sua identidade própria. Um Portugal que ele conhece de tanto o percorrer numa procura desenfreada do sinal da nossa originalidade profunda: “É o sinal da nossa originalidade profunda que eu procuro por todas as romarias, festas, feiras e fainas de Portugal” (Diário, Guimarães, 8 de Agosto de 1949).
Este peregrinar constante do homem que comia terra pela pátria portuguesa leva-o a afirmar o seu telurismo: “sou, na verdade, um geófago insaciável necessitado diariamente de alguns quilómetros de nutrição. Devoro planícies como se engolisse bolachas de água e sal, e atiro-me às serranias como à broa da infância. É fisiológico, isto. Comer terra é uma prática velha do homem. Antes que ela o mastigue, vai-a mastigando ele. O mal, no meu caso particular, é que exagero. Empanturro-me de horizontes e de montanhas, e quase que me sinto depois uma província suplementar de Portugal” (Diário, Gerês, 17 de Agosto de 1958).
A obra de Torga é testemunho testamento do Portugal mítico, universal, humanista. Português com quantos glóbulos lhe correm nas veias, Torga, pela sua obra, é a fotografia autêntica da nossa personalidade profunda, inconfundível, depurada da heterogénea idiossincrasia e do sincretismo cultural que configura a nação portuguesa.
Torga é o indómito defensor da nossa autenticidade, pretendendo vencer a osteomalácia da nossa vertebração patriótica, que a densa cegueira axiológica nos impede de identificar e defender numa ânsia histriónica e desaustinada de afirmação no mundo, uma apologia que, por vezes, se transforma em penitência: “guardião lírico da identidade nacional, padeço tormentos sempre que a vejo ameaçada” (Diário, Funchal, 25 de Agosto de 1980). Apostado numa busca desenfreada de um paroxismo de lusitanidade, é o radar perscrutador que melhor nos desfibra e formulou numa hipérbole a síntese que nos define e nos identifica, como heróis específicos, enraizados mais espiritual do que carnalmente, num chão determinado.
A um Negrilho
Na terra onde nasci há um só poeta.
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.
Esse poeta és tu, mestre da inquietação
serrana!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!
(Diário, S. Martinho de Anta, 26 de Abril de 1954)
A eufonia da linguagem torguiana permite-nos ouvir o coração da terra pulsando na semântica das palavras. Este deus do luso capitólio das letras é um poeta telúrico, identificado com a terra, definindo-se como um “geófago insaciável” (Diário, Gerês, 17 de Agosto de 1958). A terra é a fonte de onde tudo parte e onde tudo regressa, é génese e porto de viagem, princípio e fim, mãe e alimento. É esta comunhão com a terra que levam o poeta a estabelecer aqui a sua morada: “sou da terra e sou por ela” (Diário, Coimbra, 5 de Maio de 1946). E em resposta ao axioma de Jesus Cristo “o meu reino não é deste mundo” responde Torga, em sentido antagónico, a epitomisar o seu telurismo, “e o meu, precisamente, é” (Diário, Coimbra, 5 de Maio de 1946).
A caça é para Torga um ritual de comunhão com a terra. Cinegeticófilo de condição, “é na caça que a minha natureza profunda se encontra: - os olhos com a luz, o ouvido com os sons, o tacto com as coisas, o olfacto com os aromas, o sangue com o sangue” (Diário, Folgozinho, Serra da Estrela, 8 de Dezembro de 1973).
No seu telurismo, Torga afirma, convictamente, que o homem deve unir-se à Terra, ser-lhe fiel, pois para o poeta, a terra surge como a base da vida e do sentido, chegando mesmo a considerá-la como um ventre materno. Torga personifica a Terra como uma mulher disposta para a fecundação, considerando-a como um ventre materno. O sentimento de identificação com a terra projecta-se num amor pelo “reino maravilhoso” que é S. Martinho de Anta, Portugal e a Ibéria. O telurismo de Torga exprime-se no seu apego à terra, na sua fidelidade ao povo, na sua consciência de português, de ibérico, no espírito da comunhão europeia e universal.
“Este diário (…) não é uma crónica dos meus dias, mas a parábola deles” (Diário, Coimbra, 3 de Agosto de 1970)
Pode considerar-se Miguel Torga pioneiro e representante por antonomásia da escrita diarística portuguesa, por ser, juntamente com Virgílio Ferreira, com Conta Corrente, dos que lhe conferiram maior significância. O Diário torguiano, que o autor publicou ininterruptamente entre 1941 e 1993, retratam o pulsar do autor sobre o homem, o mundo e a vida entre 3 de Janeiro de 1932 e 10 de Dezembro de 1993. Este não é o retrato fiel dos acontecimentos e da vida do homem Adolfo Rocha, mas os estremecimentos e reflexões do autor sobre as circunstâncias e conjunturas da vida, como o revela no seu último Diário: “E chega ao fim, com este volume, um livro que comecei a escrever um pouco estouvadamente há sessenta anos, e acabo agora com mais assento. Como é sabido, ninguém conhece o dia de amanhã, e, pelo que me diz respeito, fui um mártir dessa incerteza. E iniciei o presente tomo quase seguro de que o não terminaria. O resultado está à vista: um estendal de dúvidas e gemidos. Mesmo assim, talvez valha a pena que se junte aos outros, como seu natural remate. Mais do que páginas de meditação, são gritos de alma irreprimíveis dum mortal que torceu mas não quebrou, que, sem poder, pôde até à exaustão. E se despede dos seus semelhantes sem azedume e sem ressentimentos na paz de ter procurado vê-los e compreendê-los na exacta medida. E que confia no juízo da posteridade, que certamente lhe vai relevar os muitos defeitos e ter em conta as poucas mas sofridas virtudes (Diário, Coimbra, 9 de Dezembro de 1993).
Para quem for à cata da verdadeira fisionomia cultural, humana, filosófica, religiosa e intelectual ou política do seu autor, este elucida-o e adverte-o: “Este diário (…) não é uma crónica dos meus dias, mas a parábola deles” (Diário, Coimbra, 3 de Agosto de 1970).
Cá está a nossa escola: E. B. 2/3 de Celeirós:
Se quiserem visitar é só ir a http://www.eb23-celeiros.rcts.pt/
"Passo por esta Universidade como cão por vinha vindimada. Nem eu reparo nela, nem ela repara em mim"
ABREU, L. MACHADO DE (2002). Prefácio. Torga peninsular pela graça da vida, in A Identidade Ibérica
ÁLVAREZ, E. (1996). Iberismo, Hispanismo e Hispanofilia en Portugal en la última década, in “Revista de História das Ideias”, 18 (1996) p. 373-387.
HERRERO, J. (1979). Miguel Torga, Poeta Ibérico, “Artes e Letras”. Lisboa: Arcádia
LOURENÇO, E. (1980). O Portugal de Torga, in Homenagem a Miguel Torga. Lisboa: Secretaria de Estado da Cultura, p. 15-22.
LOURENÇO, E. (1995). O Portugal de Torga, in “Colóquio-Letras”, 135/136 (1995) p. 5-12
MADAÍL, F. (1995). “Um homem fiel à liberdade”, in “Diário de Notícias” (19-01-1995) p. 28.
MELO, J. de (1960). Miguel Torga, “A Obra e o Homem” 2. Lisboa: Arcádia.
MELLO, C. (1998). Miguel Torga - o Escritor e o Cidadão, in “Terra Feita Voz” - Revista do Círculo Cultural Miguel Torga, 2 (1998) p. 79-94.
MOLINA, C. A. (1990). Sobre el lberismo y Otros Escritos de Literatura Portuguesa, Madrid: Akal.
MORAIS, M. da A. MORAIS (1997). Trás-os-Montes: um paraíso perdido e reencontrado por Torga, in “Estudos Transmontanos e Durienses”, 7 (1997) p. 169-184.
QUADROS, A. (1989). O Portugal de Miguel Torga, uma visão-assunção telúrica, in
QUADROS, A., A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos últimos 100 Anos. Lisboa: Fundação Lusíada, p. 172-177
http://www.vidaslusofonas.pt/miguel_torga.htm
1928 - Ansiedade
1930 - Rampa
1931 - Tributo
1932 - Abismo
1936 - O Outro Livro de Job
1943 - Lamentação
1944 - Libertação
1946 - Odes
1948 - Nihil Sibi
1950 - Cântico do Homem
1952 - Alguns Poemas Ibéricos
1954 - Penas do Purgatório
1958 - Orfeu Rebelde
1962 - Câmara Ardente
1965 - Poemas Ibéricos
1931 - Pão Ázimo
1934 - A Terceira Voz
1937 - Criação do Mundo. Os Dois Primeiros Dias
1938 - O Terceiro Dia da Criação do Mundo
1939 - O Quarto Dia da Criação do Mundo
1940 - Bichos
1941 - Contos da Montanha
1942 - Rua
1943 - O Senhor Ventura
1944 - Novos Contos da Montanha
1945 - Vindima
1950 - Portugal
1951 - Pedras Lavradas
1955 - Traço de União
1974 - O Quinto Dia da Criação do Mundo
1976 - Fogo Preso
1981 - O Sexto Dia da Criação do Mundo
1941 - Terra Firme, Mar
1947- Terra Firme (edição refundida)
1947 - Sinfonia
1949 - O Paraíso
1958 - Mar (edição refundida)
1941 - Diário (vol. I)
1943 - Diário (vol. II)
1946 - Diário (vol. II)
1949 - Diário (vol. IV)
1951 - Diário (vol. V)
1953 - Diário (vol. VI)
1956 - Diário (vol. VII)
1959 - Diário (vol. VIII)
1964 - Diário (vol. IX)
1968 - Diário (vol. X)
1973 - Diário (vol. XI)
1977 - Diário (vol. XII)
1983 - Diário (vol. XIII)
1987 - Diário (vol. XIV)
1990 - Diário (vol. XV)
1993 - Diário (vol. XVI)
Traduções
Livros seus estão traduzidos para diversas línguas, algumas vezes publicados com um prefácio seu: Alemão, Basco, Búlgaro, Castelhano, Catalão, Chinês, Finlandês, Francês, Galego, Inglês, Italiano, Japonês, Lituano, Neerlandês, Norueguês, Polaco, Romeno, Russo, Servo-Croata, Sueco.
Prémios
1969 - Prémio do Diário de Notícias.
1976 - Prémio Internacional de Poesia de Knokke-Heist.
1980 - Prémio Morgado de Mateus, ex-aecquo com Carlos Drummond de Andrade.
1981 - Prémio Montaigne da Fundação Alemã F.V.S.
1989 - Prémio Camões.
1991 - Prémio Personalidade do Ano.
1992 - Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores.
1993 - Prémio da Crítica, consagrando a sua obra.
Adolfo Correia da Rocha nasceu
Feita com distinta distinção a escola primária, dois caminhos se lhe afloravam no despontar da sua aurora juvenil: a frequência do Seminário ou a emigração para o Brasil. Acabou por trilhar ambos. Em Lamego, no Seminário, mal chegou a declinar o Rosa Rosae. No Brasil andou cinco anos por Minas Gerais. Na fazenda de Santa Cruz, pertença de um tio seu, foi capinador, vaqueiro, apanhador de café e caçador de cobras. A este lugar e a este tempo chamou ele o “cativeiro da fazenda” (A Criação do Mundo. O Segundo Dia, p. 119), o “terreiro da sua infelicidade” (Ibidem), “onde ficavam o moinho, o chiqueiro, os currais, o paiol, todas as estacões da Via-Sacra” (Ibidem).
Abandonado este calvário, de regresso a Portugal, completa em apenas três anos o curso dos liceus e em 1928 inicia o curso de Medicina, em Coimbra. É neste ano que publica o seu primeiro livro de poesia: Ansiedade.
Decorridos dois anos, abandona o grupo literário da Presença e funda com Branquinho da Fonseca a revista Sinal, de que sai um número apenas. Mais tarde, chega a fundar com Albano Nogueira a revista Manifesto, de que apenas cinco números vêem a luz da impressão.
Torga isola-se, assim, de todos os clãs literários para poder ser livre de dizer, para não ter que deixar a “verdade sepultada no tinteiro, nem a sinceridade disfarçada na penumbra das palavras” (A Criação do Mundo. O Terceiro Dia, p. 159) e manter-se sempre fiel à sua verdade: “Todo o meu afinco a lavrar papel teve uma lei: nem me enfatuar, nem mentir. Ser como sou, doesse a quem doesse. A mim, em primeiro lugar” (Diário, Coimbra, 12 de Março de 1992).
Acabada a licenciatura em Medicina, ano de 1933, começa por exercer clínica
Em 1934 passa a adoptar na sua actividade literária o pseudónimo de Miguel Torga, com que consagra a sua obra de escritor. Miguel, em homenagem aos três Miguéis ilustres espanhóis: Miguel de Molinos, Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Torga é, simplesmente, a urze que cresce estoicamente fazendo malabarismos, alimentando-se das fragas que vai mordendo sem que por isso deixe de produzir flores mimosas no meio dos matagais. A urze que cresce e floresce sempre resistente às intempéries é bem o espelho onde se pode ver a imagem fidedigna de um autor que bem precisava de encarnar a dureza do arbusto mais córneo e rústico destas serras para vencer os mil desfiladeiros de uma vida inteira vestida do avesso.
Agarrado à enxada da escrita, ferramenta da tortura e da redenção, escrever é para este deus maior do nosso pequeno Olimpo literário um “um acto ontológico” (Diário, Coimbra, 19 de Março de 1992), “um acto sagrado” – como o confessou um dia numa das raras entrevistas concedida a C. A. Molina (Entrevista, in C. A. MOLINA (1990): p. 193) -, “que compromete perpetuamente quem o pratica. Que nenhum outro implica tanta responsabilidade e tanto risco” (Diário, Coimbra, 19 de Março de 1992).
Repartido entre as duas rabiças a que nascera condenado, o bisturi e a caneta, o ofício de médico, exerce-o com humanidade estreme e seriedade austera, uma ruga de inquietação na fronte e um sentimento de fraternidade na alma: “Sempre que visto esta bata sinto-me paramentado, investido numa ordem iniciática de que o primeiro troglodita que exorcizou com rezas e fumos os males do vizinho foi o fundador (...). Saibam todos que a forma suprema de dar solidariedade a alguém é valer-lhe na doença, quando, indefeso, luta com a dor e a morte (...). Uma coisa posso afirmar: se é no balanço de um poema que elevo mais alto o espírito, é a auscultar o coração desfalecido de um semelhante que sinto pulsar o meu com mais assumida humanidade” (Diário, Coimbra, 17 de Novembro de 1978).
Escritor de singular craveira, notoriamente isolado, de raiz acentuadamente nativa, mantém-se insubornável, avesso a compadrios, a acomodações e ao tráfico de influências que cruza tantas vezes a nossa cena literária. “Mercê dos seus talentos e da sua seriedade literária impoluta, conquistou um lugar de relevo que não deve talas a ninguém, nem usou muletas de apoio de qualquer espécie” (F. DE MOURA, Vestígios de Miguel Torga., ed. David Jorge Ferreira, Barcelos 1977, p. 15); “conquistou um nome sem acrobacias de saltimbanco, sem filiação em confrarias de elogio-mútuo e sem concessões para os lados do quadrante de onde lhe chove o mau tempo, de vez em quando” (Ibidem, p. 45). Com uma vida limpa e isenta de hipotecas e capelinhas literárias e lateral a convívios suspeitos de elogios-mútuos, realizou Torga o seu santo e senha: “Ser idêntico em todos os momentos e situações. Recusar-me a ver o mundo pelos olhos dos outros e nunca pactuar com o lugar comum” (Diário, Montalegre, 1 de Setembro de 1990). Job rebelde, autónomo, único, contestatário, implacável com quaisquer tabus, com grupos de pressão e até com círculos de intelectuais anódinos e retóricos, Torga lembra a rês tresmalhada que não quer abrigo no calor do redil de nenhum dono, no chouto de nenhum rebanho. Ele é o poeta “rebelde de nascença, sem nome possível numa ficha partidária” (Fogo Preso, p. 105).
Ao longo de sessenta anos de criação ininterrupta e prolífica, cantou o amor da terra e das gentes, o amor da liberdade, o sentimento de fraternidade - “não me dói nada meu particular, peno cilícios da comunidade” (Cântico do Homem, p. 17) - e a crença no homem.
Tristes são os dias em que perdemos tudo quanto amamos e sonhamos. Porque às doze horas e trinta e três minutos do dia dezassete de Janeiro, quando ocorria o octogésimo oitavo ano da sua vida, Adolfo Correia da Rocha encerrava o capítulo terreno de uma vida marcada pela fidelidade à meditação e à escrita. Ao longo de seis décadas dedicou-se a meditar diante da janela, com o Mondego sentado à sua frente. Serena e heroicamente auscultou o homem, a criação e a morte, como um ladrão de almas, para extrair ressonâncias universais.
Com uma certidão de óbito, um abate nos cadernos eleitorais e uma lousa no cemitério, fica definitivamente estabelecida a curta ponte entre o ser e o não-ser e a dimensão da sua identidade. Saldo negativo, afinal, como o é o de toda e qualquer existência, mormente para quem o mistério da morte é o de não oferecer nenhum.
“Ficou um pouco atónito quando declarei no meio da conversa que só havia três coisas sagradas na vida: a infância, o amor e a doença. Mas depois compreendeu. Acabei por lhe demonstrar que tudo se podia atraiçoar no mundo, menos uma criança, o ser que nos ama e um enfermo. Em todos esses casos a pessoa está indefesa" (Diário, Coimbra, 27 de Outubro de 1974).
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