Torga faz da liberdade a sua religião: “a sua maior fé – como escreve Letria - foi a liberdade, dela fazendo estandarte e programa de vida, sobretudo no tempo em que a ditadura a deixou proscrita e vilipendiada”. Esta luta pela liberdade e pela identidade na conjuntura política fascista e, portanto, ditadura, e sua denúncia, desembocam na prisão de Torga, no Aljube, em 1939, onde habitou os curros durante três meses. Torga é arquétipo e epifania da revolta contra a Guerra Civil Espanhola. O seu protesto valeu-lhe a prisão, alegadamente encomendada por Franco, devido à publicação de O Quarto Dia de A Criação do Mundo, onde testemunha, numa viagem pela Europa, a cruciante realidade do confronto entre as duas Espanhas, uma pátria convulsa, submetida à violência, destruída. No cativeiro, escreve Torga um dos seus mais belos poemas, um autêntico hino à liberdade, ou melhor, à ânsia de liberdade na ausência dela:
“Ariane é um navio.
Tem mastros, velas e bandeira à proa,
E chegou num dia branco e frio,
A este rio Tejo de Lisboa.
Carregado de sonho, fundeou
Dentro da claridade destas grades…
Cisne de todos, que se foi, voltou
Só para os olhos de quem tem saudades…
Foram duas fragatas ver quem era
Um tal milagre assim: era um navio
Que se balança ali à minha espera
Entre gaivotas que se dão no rio.
Mas eu é que não pude ainda por meus passos
Sair desta prisão em corpo inteiro,
E levantar a âncora, e cair nos braços
De Ariane, o veleiro”
(Diário, Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Janeiro de 1940)
Esta luta contra a ditadura e o seu compromisso cívico levam Torga a recusar abandonar o país e viver no estrangeiro, justificando a sua decisão: “Quando nos tempos ominosos da ditadura, em Paris, onde estava de passagem, alguns exilados da oposição teimavam comigo para que ficasse entre eles, [...] respondi que nunca poderia ser um escritor português fora de Portugal. Que me faltariam, longe dele, a linguagem da terra, a gramática da paisagem e o Espírito Santo do Povo. E regressei, para ser perseguido e preso pouco depois. Mas não desanimei” (Diário, Sabrosa, 27 de Junho de 1991).
No pós ditadura, na era da democracia, não deixa, contudo, de criticar uma revolução que se desviou dos seus ideais, que apelida de “revolução de mentira” (Diário, Porto, 7 de Maio de 1977), que não foi, evidentemente, evidentemente, o evangelho anunciado de uma nova pátria: “Estranha revolução esta, que desilude e humilha quem sempre ardentemente a desejou. A mais imunda vasa humana a vir à tona, as invejas mais sórdidas vingadas, o lugar imerecido e cobiçado tomado de assalto, a retórica balofa a fazer de inteligência. Mas teimo em crer que apesar de tudo valeu a pena assistir ao descalabro. Pelo menos não morro iludido, como os que partiram nas vésperas do terramoto. Cuidavam que combatiam pelo futuro e, na verdade, assim acontecia, mas apenas na medida em que o sonhavam como se ele tivesse de ser coerente com a dignidade do seu passado de lutadores. O trágico é que um futuro sonhado não passa de uma ficção” (Diário Coimbra, 20 de Junho de 1975). E continua: “O que apelidamos de revolução é um despautério social a que teimamos em dar esse nome sagrado. Quem faz revoluções não exibe revoluções” (Diário, Coimbra, 1 de Julho de 1975).
A respeito da revolução dos cravos, temos de rememorar o que ele escreve em 1978: “Bem quero, mas não consigo alhear-me da comédia democrática que substituiu a tragédia autocrática no palco do país. Só nós! Dá vontade de chorar, ver tanta irreflexão. Não aprendemos nenhuma lição política, por mais eloquente que seja. Cinquenta anos a suspirar sem glória pelo fim de um jugo humilhante, e quando temos a oportunidade de ser verdadeiramente livres escravizamo-nos às nossas obsessões. Ninguém aqui entende outra voz que não seja a dos seus humores. É humoralmente que elegemos, que legislamos, que governamos. E somos uma comunidade de solidões impulsivas a todos os níveis da cidadania. Com oitocentos anos de História, parecemos crianças sociais. Jogamos às escondidas nos corredores das instituições” (Diário, Chaves, 12 de Setembro de 1978).
A liberdade é uma aposta na vida - “a vida é a última e mais intangível liberdade do homem” (Diário, Coimbra, 14 de Julho de 1983), – e na autenticidade: “Só depois de se ser autêntico se é livre” (Diário, Lisboa, 19 de Março de 1992). Paladino desta “liberdade identificada” (Diário, Lisboa, 19 de Março de 1992). Torga reconhece a dificuldade em sermos totalmente livres, mas advoga que reside na opção pela autenticidade a nossa responsabilidade: “Liberdade. Passei a vida a cantá-la, mas sempre com a identidade no pensamento, ciente de que é ela o supremo bem do homem. Nunca podemos ser plenamente livres, mas podemos em todas as circunstâncias ser inteiramente idênticos. Só que, se o preço da liberdade é pesado, o da identidade dobra. A primeira, pode-nos ser outorgada até por decreto; a outra, é sempre da nossa inteira responsabilidade” (Diário, Coimbra, 1 de Março de 1950). Aliás, foi este o seu santo e senha pela vida fora: “Lutei a vida inteira para ser livre. Mas consegui apenas preservar a minha identidade” (Diário, Coimbra, 2 de Outubro de 1990).
É como defensor da liberdade e da verdade, da verdade livre, que Torga peregrina a sua caminhada existencioal. Quer como filho de Dante quer na arte de Hipócrates, no seu dia-a-dia, coloca a drapejar no alto do seu peregrinar este vexilo que será a sua estrela polar de orientação, nem que para isso, em nome da liberdade, da verdade, da sinceridade e da autenticidade, tenha de isolar-se e revoltar-se, vivendo marginal à corrente, onde, segundo ele, seria bem mais fácil caminhar e romper caminho. Torga que foi, na sua pena, um poeta diligente na defesa da liberdade: “Sim, fui sempre um poeta empenhado na minha liberdade e na dos outros” (Diário, Coimbra, 23 de Agosto de 1988).
Torga, corifeu lapidar da liberdade, não a concebia sem amor: “a liberdade é uma vocação do amor” (Paraíso, p. 79) e apura-se na solidão, “é uma penosa conquista da solidão” (Diário, Coimbra, 1 de Maio de 1978). Da defesa da liberdade chega Torga à defesa da vida, ao combate pela vida, pois “a vida é a última e mais intangível liberdade do homem” (Diário, Coimbra, 14 de Julho de 1983).