A realização imanente da vida, sem a voz religiosa, é descrita por Miguel Torga como desespero: “Isto de religião está cada vez pior dentro de mim. Depois de uns arrancos fundos e angustiosos, a coisa foi secando, secando, até chegar a esta mirra mística, que já não há Jordão teológico capaz de vivificar. Mas quanto mais pobre estou desse conteúdo humano; mais cheio me sinto de desespero. O que eu dava para me levantar cedo esta manhã, ir à missa, e voltar da igreja com a cara que trazia o meu vizinho!” (Diário, Vila Nova, 16 de Agosto de 1936).
O problema da religião, do transcendente, não ficou, como vemos, esquecido no tinteiro do pai de Vicente. O poeta vive com Deus uma relação de diálogo, embora em constante oposição: “Deus. O pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de o negar, mas nunca a força de o esquecer” (Diário, Coimbra, 25 de Dezembro de 1984)
As razões latentes do seu pensamento religioso e o fundamento do seu discurso teológico, podemos procurá-los na experiência humana vivida pela criança e pelo jovem Adolfo Rocha.
Filho de uma aldeia transmontana e nascido de pais pobres, Torga subiu na vida pelo pau de sebo da incompreensão, do sofrimento e da revolta. Começa por ter uma vida difícil, pautada pelo trabalho penoso e pela exploração social - que tão bem retrata em Vindima - que se espelha na prostituição do salário, de que também foi vítima: “Apanhávamos de terça o souto do Mercador. Cargas de água no lombo, madrugadas de estalar de frio, trovoadas de meter medo, as mãos garanhas picadas nos ouriços, o saquito testo carregado até casa do sujeito, e deixa cá ver duas partes, e leva lá o resto” (A Criação do Mundo. O Primeiro Dia, p. 37)
Era testemunhando e vivendo na pele esta exploração social que Torga se rebela contra Deus. É n’Ele que encontra a génese e as causas para a falta de justiça. Deus é culpado porque entregava o livre arbítrio do mundo a forças tão desiguais e as deixava actuar sobre a máscara de um equilíbrio tão claramente falso como desajustado. Nesta acepção, pode inferir-se com Magalhães Gonçalves que todo o discurso teológico torguiano é, essencialmente, “o desdobramento eruptivo da sua história da infância” (F. de MAGALHÃES GONÇALVES, Ser e ler Miguel Torga, “Perfis” 6, Vega, Lisboa 1995, p. 36). Torga debate-se num sombrio conflito religioso, entre a necessidade e a negação. Reconhecendo Deus como resposta às inquietações do homem, falta-lhe, contudo, a audácia de um passo, ainda que pusilânime, nessa direcção: “medularmente religioso, faltava-me, contudo, a humildade necessária para acreditar” (A Criação do mundo. O Terceiro Dia, p. 174).
Torga é o poeta que prega o bem e a verdade. O bem e a verdade ao lado de qualquer corrente, defendam o que defenderem, venham eles de onde vierem. Como rebelde que é, isola-se para poder combater não Deus ou a religião, mas afirmar a sua “real incapacidade de adesão a igrejas de qualquer natureza - e continua - saí da religiosa em que fui criado e da literária em que entrei um dia, por motivos idênticos: faltava-me o ar naqueles fechados ambientes de ortodoxia. Na altura, tentei justificar logicamente o meu procedimento. Mas as relações que se dão para certos actos é o que deles menos importa. Abandonei as duas confrarias, e nunca mais entrei em nenhuma. Isso, sim, diz tudo. Significa que o meu espírito, embora sedento de absoluto, como sempre o conheci, se recusa a encontrá-lo em qualquer prisão dogmática, e porfia em descobri-lo no descampado inquieto da liberdade crítica” (Diário, Coimbra, 15 de Outubro de 1963). O seu pensamento religioso abre espaço às vivências religiosas ao mesmo tempo que se cerra para com os grupos religiosos instituídos: “Uma autêntica vivência religiosa deslumbra-me sempre. Mas um sistema religioso apavora-me como a própria morte” (Diário, Coimbra, 27 de Março de 1955).
Como homem religioso, vive mergulhado num sombrio conflito religioso, o que, porém, não nos permite afirmar que Torga seja o poeta do desespero. Ele é o poeta do desespero, mas é acima de tudo o poeta para quem a esperança permanece como a águia nas serranias que o transporta mais alto. Ela é a fada bendita que o não larga. Ele mesmo se afirma “sinaleiro da esperança no caminho de quantos neste vale de lágrimas, desesperam de a encontrar” (Diário, Ponta Delgada, 10 de Junho de 1989). Esgotado, de facto, o cálice da amargura é necesssário que surja a bebedeira da esperança, que o luto de desespero dê lugar ao sol da esperança. Para tal é urgente um “permanente acto de fé na graça lustral da esperança” (A Criação do Mundo. O Sexto Dia, p. 434).
É esta esperança que lhe permite um dia afirmar querer sentir-se ligado a algo mais transcendental que a imanência desta vida, a algo que não termine com a simples e derradeira pancada do coração: “Queria era sentir-me ligado a um destino extra-biológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração” (Diário, Vila Nova, 16 de Agosto de 1936).