Adolfo Correia da Rocha nasceu
Feita com distinta distinção a escola primária, dois caminhos se lhe afloravam no despontar da sua aurora juvenil: a frequência do Seminário ou a emigração para o Brasil. Acabou por trilhar ambos. Em Lamego, no Seminário, mal chegou a declinar o Rosa Rosae. No Brasil andou cinco anos por Minas Gerais. Na fazenda de Santa Cruz, pertença de um tio seu, foi capinador, vaqueiro, apanhador de café e caçador de cobras. A este lugar e a este tempo chamou ele o “cativeiro da fazenda” (A Criação do Mundo. O Segundo Dia, p. 119), o “terreiro da sua infelicidade” (Ibidem), “onde ficavam o moinho, o chiqueiro, os currais, o paiol, todas as estacões da Via-Sacra” (Ibidem).
Abandonado este calvário, de regresso a Portugal, completa em apenas três anos o curso dos liceus e em 1928 inicia o curso de Medicina, em Coimbra. É neste ano que publica o seu primeiro livro de poesia: Ansiedade.
Decorridos dois anos, abandona o grupo literário da Presença e funda com Branquinho da Fonseca a revista Sinal, de que sai um número apenas. Mais tarde, chega a fundar com Albano Nogueira a revista Manifesto, de que apenas cinco números vêem a luz da impressão.
Torga isola-se, assim, de todos os clãs literários para poder ser livre de dizer, para não ter que deixar a “verdade sepultada no tinteiro, nem a sinceridade disfarçada na penumbra das palavras” (A Criação do Mundo. O Terceiro Dia, p. 159) e manter-se sempre fiel à sua verdade: “Todo o meu afinco a lavrar papel teve uma lei: nem me enfatuar, nem mentir. Ser como sou, doesse a quem doesse. A mim, em primeiro lugar” (Diário, Coimbra, 12 de Março de 1992).
Acabada a licenciatura em Medicina, ano de 1933, começa por exercer clínica
Em 1934 passa a adoptar na sua actividade literária o pseudónimo de Miguel Torga, com que consagra a sua obra de escritor. Miguel, em homenagem aos três Miguéis ilustres espanhóis: Miguel de Molinos, Miguel de Cervantes e Miguel de Unamuno. Torga é, simplesmente, a urze que cresce estoicamente fazendo malabarismos, alimentando-se das fragas que vai mordendo sem que por isso deixe de produzir flores mimosas no meio dos matagais. A urze que cresce e floresce sempre resistente às intempéries é bem o espelho onde se pode ver a imagem fidedigna de um autor que bem precisava de encarnar a dureza do arbusto mais córneo e rústico destas serras para vencer os mil desfiladeiros de uma vida inteira vestida do avesso.
Agarrado à enxada da escrita, ferramenta da tortura e da redenção, escrever é para este deus maior do nosso pequeno Olimpo literário um “um acto ontológico” (Diário, Coimbra, 19 de Março de 1992), “um acto sagrado” – como o confessou um dia numa das raras entrevistas concedida a C. A. Molina (Entrevista, in C. A. MOLINA (1990): p. 193) -, “que compromete perpetuamente quem o pratica. Que nenhum outro implica tanta responsabilidade e tanto risco” (Diário, Coimbra, 19 de Março de 1992).
Repartido entre as duas rabiças a que nascera condenado, o bisturi e a caneta, o ofício de médico, exerce-o com humanidade estreme e seriedade austera, uma ruga de inquietação na fronte e um sentimento de fraternidade na alma: “Sempre que visto esta bata sinto-me paramentado, investido numa ordem iniciática de que o primeiro troglodita que exorcizou com rezas e fumos os males do vizinho foi o fundador (...). Saibam todos que a forma suprema de dar solidariedade a alguém é valer-lhe na doença, quando, indefeso, luta com a dor e a morte (...). Uma coisa posso afirmar: se é no balanço de um poema que elevo mais alto o espírito, é a auscultar o coração desfalecido de um semelhante que sinto pulsar o meu com mais assumida humanidade” (Diário, Coimbra, 17 de Novembro de 1978).
Escritor de singular craveira, notoriamente isolado, de raiz acentuadamente nativa, mantém-se insubornável, avesso a compadrios, a acomodações e ao tráfico de influências que cruza tantas vezes a nossa cena literária. “Mercê dos seus talentos e da sua seriedade literária impoluta, conquistou um lugar de relevo que não deve talas a ninguém, nem usou muletas de apoio de qualquer espécie” (F. DE MOURA, Vestígios de Miguel Torga., ed. David Jorge Ferreira, Barcelos 1977, p. 15); “conquistou um nome sem acrobacias de saltimbanco, sem filiação em confrarias de elogio-mútuo e sem concessões para os lados do quadrante de onde lhe chove o mau tempo, de vez em quando” (Ibidem, p. 45). Com uma vida limpa e isenta de hipotecas e capelinhas literárias e lateral a convívios suspeitos de elogios-mútuos, realizou Torga o seu santo e senha: “Ser idêntico em todos os momentos e situações. Recusar-me a ver o mundo pelos olhos dos outros e nunca pactuar com o lugar comum” (Diário, Montalegre, 1 de Setembro de 1990). Job rebelde, autónomo, único, contestatário, implacável com quaisquer tabus, com grupos de pressão e até com círculos de intelectuais anódinos e retóricos, Torga lembra a rês tresmalhada que não quer abrigo no calor do redil de nenhum dono, no chouto de nenhum rebanho. Ele é o poeta “rebelde de nascença, sem nome possível numa ficha partidária” (Fogo Preso, p. 105).
Ao longo de sessenta anos de criação ininterrupta e prolífica, cantou o amor da terra e das gentes, o amor da liberdade, o sentimento de fraternidade - “não me dói nada meu particular, peno cilícios da comunidade” (Cântico do Homem, p. 17) - e a crença no homem.
Tristes são os dias em que perdemos tudo quanto amamos e sonhamos. Porque às doze horas e trinta e três minutos do dia dezassete de Janeiro, quando ocorria o octogésimo oitavo ano da sua vida, Adolfo Correia da Rocha encerrava o capítulo terreno de uma vida marcada pela fidelidade à meditação e à escrita. Ao longo de seis décadas dedicou-se a meditar diante da janela, com o Mondego sentado à sua frente. Serena e heroicamente auscultou o homem, a criação e a morte, como um ladrão de almas, para extrair ressonâncias universais.
Com uma certidão de óbito, um abate nos cadernos eleitorais e uma lousa no cemitério, fica definitivamente estabelecida a curta ponte entre o ser e o não-ser e a dimensão da sua identidade. Saldo negativo, afinal, como o é o de toda e qualquer existência, mormente para quem o mistério da morte é o de não oferecer nenhum.
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